quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Orçamentos e Jogadores



Uma das tarefas mais interessantes na vida de economistas e gestores é a elaboração de orçamentos. Quer sejam orçamentos de multinacionais quer de pequenas empresas, é um exercício fascinante – ainda mais do que a elaboração do Orçamento do Estado.



A razão principal é a mesma de um andaime numa obra. Colocam-se andaimes para os operários laborarem em segurança, enquanto a obra decorre. Ninguém quer que os andaimes fiquem à mostra no final da obra mas também ninguém quer que decorram acidentes durante a obra. Da mesma forma, ninguém quer que o Orçamento se mostre deficiente como um andaime que não nos deixa chegar lá mas, em contrapartida, todos ficam satisfeitos quando o andaime serviu para se fazer um belo monumento.

A probabilidade de um orçamento ser executado à risca, neste caso - aos cêntimos - é quase tão grande como a de se acertar numa chave de um totobola. Portanto, economistas e gestores não são responsabilizados por acertar no alvo mas antes por desiludirem geralmente porque se enganaram em grande escala na previsão das despesas ou na evolução das receitas. Aí, conclui-se que, afinal, o andaime estava vacilante e a obra toda pode ruir.

A apresentação de orçamentos (e discussão e votação em assembleias concorridas) é uma manifestação vital de qualquer coletividade. Pelo contrário, a não apresentação e votação dos mesmos tende a estar associada a desinteresse da coletividade pela expetativa de atividade em análise, pela concentração ditatorial da vida da coletividade no iluminismo de alguns decisores ou pela desculpa em relação a maus resultados do passado. Podemos assim assumir que um orçamento é um elemento fático que, muito provavelmente com –algum – erro na execução revela, se discutido e votado, um momento de valor que mostra um dinamismo essencial da coletividade, da empresa, do país.

Um dia, perguntaram ao tesoureiro de uma confraria se não tinha medo de errar as contas para o ano seguinte quando apresentava as provisões para esse período. “Medo de errar, não”, respondeu ele. Fez-se silêncio para se ouvir do fundo da sua voz de quase noventa anos – “Medo tenho de daqui a um ano não responder por estas contas”.

Portanto, um orçamento mostra que, no fundo, bem no fundo, nós queremos chegar ao fim do jogo para saber o resultado. Como “O Jogador” de Dostoievski sabia, a emoção de prever a aposta é tão-só pedir emprestado à vida um tempo mais para perceber o nosso erro. Ou o nosso acerto.

Boas Festas!


segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Descartes na Catalunha






A “Questão Catalã” trouxe ao debate europeu o tema dos nacionalismos/regionalismos que desde a “Questão Escocesa” tinha parecido ficar em pendência. Para nós, portugueses, a unidade deste país parece simples de entender (jamais negligenciando a tensão açoriana ou madeirense que parece arrefecida – curiosamente, neste período de maior atenção sobre a Catalunha, Marcelo Rebelo de Sousa visitou os Açores…) No entanto, a literatura sobre o tema tem elencado um conjunto de hipóteses organizadas em teorias mais ou menos interdisciplinares que sugerem o recrudescimento destas tenções na observação de um triângulo de forças: a região separatista ter uma densidade demográfica e de ativos financeiros considerável, o centro ser visto/efetivamente um beneficiário líquido face à região independentista (facilmente mensurável em termos fiscais) e finalmente a mesma região estar munida de ‘conforto reativo’- no passado significando homens, armas e aliados, hoje em dia, significando política, diplomacia e gestão mediática.

Quando Afonso Henriques, Paio Mendes, Gonçalo Mendes da Maia, João Peculiar e quantos outros – como os hábeis Moniz – decidiram ser ‘autónomos’ e depois ‘independentes’ do suserano imperialista de Castela, o torrão que era o Condado Portucalense era dos espaços mais densos, mais ricos e mais dinâmicos da instável Ibéria do Século XII. Quando o Brasil concretizou a Independência do Reino de Portugal, estes três vetores eram sobejamente compreendidos pelos intervenientes de então. Os exemplos da História Mundial são diversificados – e vão desde os EUA com os colonos independentistas liderados por Washington até aos puzzles dos Balcãs, da América Latina ou do Medio Oriente.

Por isso, quando os residentes de determinado espaço percebem o amadurecimento da sua riqueza, das suas ideias de ‘Nação comum’, a definição da capacidade de resistência à contra-reação do Centro ou a impertinência fiscal do Império, os mesmos assumem posições independentistas. Dizia-me um colega da Psicologia que é muito parecido com a chegada à Idade Adulta dos indivíduos – quando se sentem financeiramente confortáveis (o vetor da densidade de riqueza), quando sentem o suporte mental de assegurarem a sobrevivência social sozinhos (o vetor do conforto reativo) e quando sentem que se aborrecem mais em casa paterna do que fora (o vetor dos benefícios líquidos) tendem a entoar ‘I want to break free’.

Resta saber – no adolescente ou no trintão, na Catalunha ou na Escócia – se as expetativas são certas ou não. Parafraseando o barroco Descartes, mesmo a certeza tem o seu grau de dúvida. E este nunca é o mesmo para todos os seres humanos.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Iron Maiden, Dom Sebastião e Presidentes da Junta



Vou começar como vou terminar – neste momento, cada concelho de Trás-os-Montes e Alto Douro, incluindo os sedeados nas cidades, perde um habitante por dia. É uma evidência.
Com esta evidência, é muito interessante – sob o ponto de vista literário – assistir a alguns momentos da campanha eleitoral autárquica. É-o porque estamos perante episódios trágicos.
De acordo com o sentido maior de tragédia, é classificada enquanto tal a obra (ou representação) na qual as personagens, incapazes de contrariar o destino, vão lutando durante o enredo – ainda que sem sucesso – para contrariar o mesmo. A Literatura Universal tem um cardápio longo de grandes obras desta natureza que vão ficar secundadas pela generalidade dos discursos que povoaram a campanha autárquica recente.
Por um lado, é verdade que algumas destas personagens são inocentes perante o trágico destino. A população eleitora é uma dessas personagens inocentes que tem assistido a uma melhoria das condições de vida resultado do amadurecimento do Desenvolvimento do país, se compararmos com o que se passava há trinta ou há cinquenta anos. Vive-se mais, existe mais oportunidade de turismo dentro e fora do país, há mais atividades culturais e propostas de conhecimento dispersas pelo território, o Serviço Nacional de Saúde está mais próximo da população e os rendimentos das famílias permitem um acesso a infraestruturas de consumo impensáveis há duas gerações atrás. A qualificação dos cidadãos aumentou ainda que sem a compensação relativa equivalente – muitos netos (agora licenciados ou mestres) de cidadãos que só tiveram a oportunidade de completar a então Escola Primária não estão hoje com melhores remunerações relativas do que os seus avós (outra das ‘tragédias nacionais’). Isto significa que até têm hoje cursos, que até passaram pelas universidades, mas em contrapartida a desigualdade sócio-económica não diminuiu como devia no nosso país (um tema também sobejamente debatido e evidenciado). Também é verdade que a população vai mais depressa assistir a um jogo no Dragão, na Luz ou no Estado do Rei com os vizinhos do que vai ao Monte da Forca, ao Municipal de Murça no Seixo ou ao Campo da Feira em Sabrosa, o que explica muita outra coisa. Finalmente, também é verdade que a população janta mais vezes fora do que há cinquenta anos, dinamiza a restauração envolvente e convive mais com uns e com outras. E, no entanto, cada concelho da região perde um residente por dia. Por mês? Não, por dia.
Agora, olhemos para outras personagens inocentes – as autarquias. A evolução do número de funcionários municipais mostra um aumento nos primeiros trinta anos a seguir a Abril de 1974, oficialmente estancado em meados da primeira década deste milénio (ainda que com a substituição de muitos empregos permanentes por funções avençadas, contratos de duração indefinida, lugares comparticipados por fundos comunitários ou por iniciativas de ciclo político). Com esta evolução, houve também um aumento dos recursos das autarquias de modo a responder ao crescimento da despesa associada. A descentralização continuou a basear-se no reforço das dotações atribuídas, sob várias formas aos municípios, e com isto abandonou-se o ideal regionalista, imiscuído no transformismo das CCDR ou das CIM. Houve evolução na qualificação dos funcionários municipais, houve modernização das estruturas administrativas, houve uma clara aposta na digitalização das acessibilidades, na diversificação dos gabinetes que replicaram em pequena (ou em não tão pequena) escala os corredores de São Bento e até na maquilhagem e na assessoria de imagem dos autarcas. Portanto, tanto esforço, tanto sacrifício em prol da população inocente e… no entanto, cada concelho da região perde um residente por dia. Por mês? Não, por dia.
Confesso pois a admiração homérica pelos candidatos a autarcas e pelas suas mensagens. Não lhes deve ser nada fácil transmitir esperança, sonhos e energia perante os factos de tal trágico silêncio. Encontro aqui duas personagens com lutas e expressões parecidas. A primeira foi Lord Raglan, no trágico ataque da Brigada Ligeira e as suas palavras de incentivo aos soldados a caminho do martírio, palavras imortalizadas pelos Iron Maiden, no tema ‘The trooper’. A segunda é o nosso adorável Dom Sebastião que, em Alcácer-Quibir, dizia: “Morrer, sim, mas devagar.” O poeta arménio Vahagn Davtian sintetizou este trágico destino de Sísifo – por algum motivo, Sísifo foi também a personagem que Torga escolheu para patrono da nossa região - num verso imortal: “Avançar sempre – chegar nunca”.